Criado na periferia de Buenos Aires, gordinho e de baixa estatura, mas forte de espírito e com um apetite insaciável por grandes momentos – com nariz de aspirador de pó industrial – Diego Armando Maradona foi o mais icônico dos ícones – um jogador de futebol tão enigmático e hipnotizante que dividiu a lealdade de um país inteiro.
No verão de 1990, Maradona andou sobre a água. El Pibe de Oro (O Menino de Ouro) tinha 29 anos de idade e tinha acabado de carregar o clube regional Napoli para o segundo título da Serie A em sua história, consolidando seu status de semi-Deus na Campânia.
Com as honras domésticas garantidas, Maradona se preparava para mais uma campanha na Copa do Mundo com a atual campeã Argentina, em um torneio sediado nas mesmas terras que acabara de conquistar com o Napoli.
Depois de uma recepção inicial ruim na Itália, Maradona colocaria seus consideráveis poderes de persuasão em uso em sua casa adotiva em Nápoles, onde sua popularidade arrastaria um exército de fãs para um dilema entre time e país.
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Maradona: o filho adotivo de Nápoles
A intimidade compartilhada entre Diego Maradona e o povo de Nápoles estava profundamente enraizada e era resultado de experiências compartilhadas e lutas contra a discriminação.
Maradona era filho de imigrantes do território mais pobre da Argentina e, desde cedo, ele sabia o que significava ser ridicularizado e sofrer preconceito pelas classes média e alta do país.
Quando ele desembarcou em Nápoles em 1984, ele encontrou uma cidade de almas gêmeas, pessoas que sofreram racismo nas mãos da população do Norte da Itália por décadas.
O tribalismo Norte x Sul na Itália – que ainda está presente – foi particularmente venenoso nos anos 80 e início dos anos 90, quando os napolitanos foram tratados com o mesmo desdém que muitos imigrantes econômicos enfrentam hoje.
As ricas cidades do Norte consideravam os sulistas como “não verdadeiramente italianos”, de fato, quando Maradona fez sua estreia pelo Napoli em 1984 em Verona, os torcedores da casa seguraram uma faixa de “Bem-vindo à Itália”. Essa faixa ainda é mostrada quando os Partenopei chegam à cidade.
Torcedores do Milan, Juventus e Génova, entre outros, deram o mesmo tratamento, por isso, quando as atuações inspiradoras de Maradona levaram o Nápoles ao topo da Serie A, o sucesso em campo significou infinitamente mais.
Maradona havia injetado na cidade um novo sentimento de orgulho e permitido que seu povo lutasse contra as chacotas de seus vizinhos do norte.
No entanto, o amor conquistado por Maradona em Nápoles foi acompanhado pelo ódio que ele provocou fora dos limites da cidade no resto da Itália e ele estava prestes a experimentar em primeira mão o quão profunda era essa hostilidade.
Copa do Mundo de 1990: Vaias em Milão
A Argentina foi sorteada ao lado de Camarões, Romênia e União Soviética no Grupo B da Copa do Mundo da Itália de 1990 e a Albiceleste abriu a defesa do título contra os Leões Indomáveis no dia 8 de junho, em Milão.
Talvez fosse de se esperar, mas Diego Maradona e seus companheiros argentinos receberam a mais fria das recepções dos torcedores em San Siro, que vaiaram o hino nacional do país antes do jogo começar.
Maradona era a personificação do Napoli aos olhos dos torcedores e o público milanês descarregou sua munição por toda parte. Para a alegria dos italianos, a Argentina sofreu uma derrota chocante por 1 a 0 contra Camarões e deixou a cidade com o rabo entre as pernas.
Na sequência, Maradona teve muito a dizer. “Meu único prazer esta tarde foi descobrir que os italianos em Milão deixaram de ser racistas: hoje, pela primeira vez, eles apoiaram os africanos”, disparou.
A Argentina se recuperou e venceu a União Soviética por 2 a 0 na segunda rodada – uma vitória conquistada em um ambiente muito mais agradável e amado por Maradona, o Stadio San Paolo, em Nápoles.
Em uma briga acirrada, a Argentina precisou de uma segunda intervenção um pouco menos infame da “Mão de Deus” de Maradona para derrotar os soviéticos quando o atacante tirou uma cabeçada com a mão para salvar um gol quando o placar estava empatado em 0 a 0.
A Argentina encerrou sua fase de grupos em Nápoles com um empate de 1 a 1 contra uma corajosa equipe romena e, posteriormente, garantiu a passagem para a próxima fase da Copa do Mundo na rapa do tacho como um dos melhores terceiros colocados.
Argentina avança para as oitavas de final
A Argentina tinha tido seus altos e baixos na primeira fase da competição na Itália, embora uma chama de otimismo muito necessária tenha sido acesa nas oitavas de final em 24 de junho quando eles jogaram contra o seu maior rival sul-americano Brasil.
Quase toda a multidão de 61.381 pessoas no Stadio Delle Alpi, em Turim, estava clamando por uma vitória brasileira, enquanto o talismã do Napoli, Diego Maradona, foi novamente forçado a lutar contra adversários que somavam mais de 11.
No entanto, um lance de marca registrada de Maradona arrastou vários marcadores brasileiros para sua órbita e o atacante deu um passe para o desmarcado Claudio Caniggia, que contornou o goleiro Cláudio Taffarel para marcar o único gol do jogo, para alegria do pequeno grupo de torcedores argentinos presentes.
Nas quartas de final, a Argentina precisou de pênaltis para derrotar um forte time da Iugoslávia que tinha estrelas como Dragan Stojkovic, Robert Prosinecki e Dejan Savicevic em Florença e, embora Maradona inexplicavelmente tenha perdido seu pênalti, o goleiro Sergio Goycochea defendeu duas penalidades máximas e seus heroísmos foram suficientes para que a Albiceleste ganhasse.
Por coisas do destino, Maradona e a Argentina se cruzariam com a Itália nas semifinais da Copa do Mundo e a grande disputa pelas quartas de final seria decidida em Nápoles, no Coliseu pessoal de Maradona – o Stadio San Paolo.
Semifinal da Copa do Mundo e uma cidade dividida em duas
Diego Maradona sabia com certeza que o hino nacional da Argentina seria respeitado em Nápoles, embora também estivesse ciente do peso incrível que suas palavras tinham na cidade. Por isso, na preparação para a semifinal, ele tentou usar sua influência para ganhar apoio para seu país dos torcedores do Napoli.
“Querem que os napolitanos sejam italianos por uma noite, enquanto nos outros 364 dias do ano eles são chamados de terroni (um insulto italiano traduzido aproximadamente como camponeses)”, disse Maradona a repórteres.
“Só quero respeito pelos napolitanos, tanto meus companheiros quanto eu sabemos que são italianos, não podemos pedir que torçam por nós, mas o resto da Itália deve saber que o povo de Nápoles é tão italiano quanto eles.”
Enquanto o apelo habilmente construído de Maradona, que teria impressionado o orador político mais inspirado, não conseguiu provocar uma ruptura total de lealdades, partes do Stadio San Paolo ainda estavam divididas em 3 de julho, quando a Argentina jogou contra a Itália.
Uma faixa na semifinal dizia: “Maradona, Nápoles te ama, mas a Itália é nossa pátria”, enquanto outra mostrava uma mensagem dizendo: “Diego em nossos corações, Itália em nossos cantos”.
O próprio Maradona foi aplaudido sem reservas quando entrou em campo pela primeira vez, enquanto o hino nacional argentino foi escutado com respeito.
A Itália abriu vantagem aos 17 minutos com Toto Schillaci para a alegria dos italianos, no entanto, Claudio Caniggia empatou no segundo tempo e após uma prorrogação tensa, a Argentina novamente prevaleceu nos pênaltis.
Diego Maradona marcou o quarto e crucial pênalti da sua equipe, mas Sergio Goycochea voltou a ser o herói do jogo, defendendo duas vezes Roberto Donadoni e Aldo Serena para classificar a Argentina.
Mais tarde, o goleiro italiano Walter Zenga, derrotado, admitiria que a atmosfera morna no Stadio San Paolo teve um efeito psicológico na equipe italiana.
“Isso nos afetou”, disse ele ao National. “É difícil explicar em cinco ou mais palavras, mas viemos de Roma, onde jogamos cinco jogos, com cinco vitórias e nenhum gol contra. Os apoiadores não se importavam se eram torcedores da Roma, torcedores da Lazio, torcedores da Inter ou torcedores da Juventus. Tivemos apoio total durante os 90 minutos.
“Depois, chegamos a Nápoles, Maradona falou algumas coisas e o clima mudou. Não podemos usar isso como desculpa para a Argentina nos vencer, mas a sensação antes era diferente. Isso nos surpreendeu, mas não causou a derrota.”
Final da Copa do Mundo e as vaias voltam
Maradona pode muito bem ter sentido que deu um ou dois socos de volta em Nápoles após o duro tratamento que a Argentina sofreu nos estádios do norte da Itália, embora os torcedores da Azzurra estivessem prestes a aumentar as apostas em um vai e vem cada vez mais amargo.
Nos dias que antecederam a final da Copa do Mundo em Roma, entre Argentina e Alemanha Ocidental, uma série de incidentes aumentou as tensões. O irmão de Diego, Lalo, foi preso pelas autoridades enquanto estava na Ferrari de Maradona. Por outro lado, um torcedor da Itália violou a segurança e destruiu uma bandeira da Argentina na base de treinamento do país em Trigoria.
O clima tenso entre a Argentina e seus anfitriões estava se transformando em hostilidade e quando a Argentina entrou em campo no Stadio Olimpico na Cidade Eterna para a final da Copa do Mundo, todo o local explodiu com uma onda de vaias, assobios e insultos.
O hino nacional argentino era quase inaudível com o barulho e quando a câmera percorreu a fila de jogadores da Albiceleste orgulhosamente gritando as letras do seu hino, deu a Maradona um foco especial quando o capitão murmurou as palavras “hijos de puta, hijos de puta” (filhos da puta) repetidamente em resposta às provocações.
A disputa que se seguiu foi quase tão caótica quanto os amargos cantos das arquibancadas. Tanto Pedro Monzón como Gustavo Dezotti foram expulsos pela Argentina antes de Andreas Brehme dar o vitória para a Alemanha Ocidental com um gol de pênalti.
Os torcedores em Roma se alegraram enquanto Maradona e seus companheiros de equipe estavam irritados com a derrota e com o desempenho do árbitro mexicano Edgardo Codesal.
A Argentina voltou para casa como finalista derrotada e menos de um ano depois, Maradona também deixou a Itália, com seu uso indevido de cocaína finalmente sendo descoberto depois um teste de drogas reprovado após uma aparição contra o Bari.
Apesar de suas façanhas anti-italianas em 1990 e da saída sem cerimônia logo depois, Maradona manteve seu status de figura de inspiração muito amada em Nápoles. Imagens do ícone ainda podem ser vistas em toda a paisagem urbana de lá, e o Napoli aposentou a camisa 10 em homenagem a Maradona em 2000. 20 anos depois, logo após sua morte, eles renomearam o Estádio San Paolo como Stadio Diego Armando Maradona em outra homenagem eterna a um dos filhos prediletos da cidade.